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Viver do sonho só é possível quando começar a sonhar

  • Carlane Borges
  • 16 de jun. de 2016
  • 10 min de leitura

Duas vidas se cruzam para escrever juntos um futuro inimaginável.

A entrevista estava marcada para o fim da tarde de um sábado de junho (04) no Parque da Independência. Com um outono chuvoso, pouco comum, no parque não seria possível. Felipe mora na Mooca e conhece tudo por lá. Nos encontramos na estação, de lá fomos para um supermercado da região. O supermercado fez parte da adolescência de Felipe. Natan estava conosco. E pensei na possibilidade de ser uma das fontes alternativas. Descobri mais tarde que eles cantavam e faziam rap juntos. Na música, um adota o nome de Haxincha. O outro, o nome comum, Natan.

Felipe Borges Espanhol, 21 anos e tem uma vida agitada. Já foi estudante de engenharia civil por quatro anos, trabalhou como estagiário e efetivo numa empresa de engenharia. Apaixonado por leitura e música. Atualmente, escreve a biografia da avó, outra de suas paixões. Também escreve, canta e produz rap. Além de ser estudante do primeiro ano de publicidade e propaganda.

Natan Strazzeri, 21 anos, é estagiário em gastronomia. Estudou economia por quase dois semestres e trabalhou em um escritório de contabilidade com o tio. Nunca gostou muito de estudar, nem de ler. Muito observador e sensitivo, escreve suas letras a partir de suas experiências e observação do mundo ao seu redor. Estudando gastronomia e trabalhando na cozinha de um hotel famoso, Holiday Inn, divide seu tempo entre a namorada Tatiana Bertaglia, os amigos e o rap.

Felipe à esquerda e Natan a direita. Foto: Carlane Borges

Do principio

Felipe nasceu em um bairro tradicional de São Paulo, a Mooca. Estudou como bolsista no Colégio São Judas. Filho de uma mãe "coruja e superprotetora”, como ele costuma dizer e um pai muito tranquilo, “tranquilo até demais”. Foi uma criança relativamente presa, não brincava na rua. Era da escola para casa e de casa para a escola. Mesmo não admitindo com essas palavras, era um dos “nerds” da sala. Introvertido, mas curioso. Gostava de aprender sobre as coisas e era sempre o do contra. “Eu gostava de aprender sobre as coisas. Na escola tinha sempre que ir bem para não perder a bolsa.” Tinha bolsa porque a mãe trabalha como inspetora no colégio.

Sua influência musical sempre foi o Rock, herança do pai, e a Música Popular Brasileira, conhecida como MPB, influência da mãe. “Eu ouvia muito Pink Floyd, Beatles, Led Zeppelin, Black Sabatini, Metallica. Do hard rock ao heavymetal. Todo rock dos anos 70, 80 e 90. Ouvia em casa.” Era esse o gênero musical que ouviu até seus 12 anos. Viveu e vive com os pais, mais a avó paterna. Fala da avó sempre com admiração. Uma senhora de 81 anos que veio da Itália para o Brasil aos 16 anos de idade.

Felipe Borges Espanhol. Foto: arquivo pessoal

“Eu acho que a minha história é a parte feia da coisa, mas vamos lá”, brinca Natan. Não gostava de estudar. Foi filho único por 16 anos, porém não revela ter sido superprotegido. Estudante de escola pública, viu muito de perto a realidade de amigos que hoje não estão mais presentes, mortos ou encarcerados. A primeira influência musical que se recorda é da música gospel. “Demorei pra aceitar o rock, mas cresci com essas batidas. Meu pai tocava bateria na igreja e eu também aprendi. Tinha uma bateria em casa”, recorda.

Uma criança apegada às raízes. “Meu avô (paterno) era minha inspiração. Com ele eu aprendi a dar valor às pessoas. Os laços de amizade e familiar.” Mas aos seus nove anos a realidade de “família tradicional” foi desfeita. Os pais se separaram. Recorda desses momentos com tristeza, porém reconhece que as coisas acontecidas no passado foram essenciais para ser quem é hoje. Passou o fim da infância e a adolescência não reconhecendo o pai como tal. Via no avô a imagem de pai que havia perdido. “Perto de casa tinha um terreno que a gente sempre ia soltar pipa. Depois da separação eu sempre pedia pra ele me levar, mas sempre dizia que não dava. Nesse dia eu liguei pra ele e chamei, mas ele disse não, então fui sozinho. Quando eu cheguei lá ele estava. Voltei pra casa chorando. A partir daquele dia disse ‘não tenho mais pai’”.

Natan Strazzeri. Foto: arquivo pessoal

Na Adolescência

Natan cresceu sem reconhecer o pai. Suas influências musicais mudaram radicalmente. Aos doze anos, com o reconhecimento acelerado, porém marginalizado do funk, foi o que passou a ouvir. Ouvinte assíduo de funk, compartilhava do gosto com os amigos da escola. Passou a compor. “Eu tinha uns amigos MC's. Tinham a minha idade. Eu escrevi minha primeira música aos doze anos, era muito ruim. Gravei num desses microfones de dez contos. Soltava na internet e o pessoal até gostava.”

Segundo ele, essa foi a época que estava nascendo o funk ostentação, mas o do momento era o “proibidão”. A realidade cantada pelos amigos era a realidade que eles conheciam, enquanto Natan acreditava fazer algo mais consciente. “Os funks deles falavam do crime, de sexo, violência. As minhas rimas falavam dessas coisas, mas não como algo positivo. Era como se eu já soubesse o que aconteceria a eles”, completa. A adolescência foi uma fase difícil. Sem um pai presente e uma crescente revolta.

Aproximação com o funk foi a forma que encontrou para se “vingar” do pai, para satisfazer-se ou tentar esquecer os momentos difíceis. Em contrapartida, via no avô o que o pai não lhe oferecia: “Meu avô era 'da hora'. Até mostrava algumas das minhas letras para ele. Ele achava legal, as letras até que eram boas. E, de certa forma, ele tinha orgulho, viu que eu tentava me encontrar em alguma coisa”.

Felipe, na transição para a adolescência, começou a conquistar sua liberdade: “Quando eu tinha uns treze anos, comecei a frequentar as ruas do bairro. Eu vinha todos os dias para o estacionamento aqui do Extra. Aqui eu conheci a galera do bairro”. Foi nos encontros desse estacionamento que viu seu horizonte musical se expandir: “o pessoal que eu conheci andava de skate, eu nunca fui bom. Acho que essa relação do skate, rock e rap é que são culturas que nasceu na rua”, afirma.

Passou de uma criança introvertida e tímida para um adolescente ousado: “Tudo que fui privado na infância gerou a intensidade na adolescência. Eu queria fazer tudo, me jogava de cabeça. Isso em alguns momentos é ruim, tem que fazer as coisas com consciência”. Foi nessa fase que conheceu bem o bairro que mora. Além do Extra, passou a visitar praças, bares e outros locais próximos. Sempre gostou de estudar e escrever. Seus escritos são de longa data. Na época isso só aumentou. Sempre foi texto, não tinha o formado 4x4: verso, estrofe. Escrevia poemas, mas nunca cantado, sempre pensado para ler. Sua inspiração era o cotidiano, as coisas rotineiras que aconteciam: “Nessa época, ficava escrevendo pelos lugares. Saia e escrevia”, recorda.

Conhecendo, compondo e produzindo rap

Foi nas ruas, no skate e nos novos amigos que Felipe conheceu mais a fundo o rap: “Eu já ouvia, mas não com profundidade. Ouvia as coisas da época, o que todo mundo ouvia”. Mesmo se aproximando do rap, não abandonou suas raízes musicas: “Eu ouvia tudo, conheci outras coisas no rock. Já até fui um pouco preconceituoso com estilo musical, mas hoje não tenho isso. Ouço tudo, para mim, música é música e o gênero é o só o barquinho que você carrega sua informação, só o veiculo”, comenta.

Foi aprofundando-se no rap e quando viu já estava tirando o flow de alguns cantores. (o flow é tirar a letra da música na mesma batida e sonoridade). Percebendo que era possível, pensou então na possibilidade dele mesmo cantar. Felipe sabia e a mãe também dizia que a voz não era boa pra cantar. Mais tarde descobriu a técnica adequada. Sua primeira letra que gravou foi “Hiato Hospitalar”. A letra surgiu em um dia que estava no hospital público com a mãe. “Eu resumiria essa letra nessa parte ‘É o hiato hospitalar, é a crise a se julgar’”.

Sua música, de uma maneira geral, é sobre as coisas que acontecem com ele ou observa: “Eu escrevia muita coisa do cotidiano. As minhas primeiras letras eu escrevia na empresa de engenharia que trabalhava”. Muitas de suas letras foram escritas no banheiro. Quando gravou a primeira, postou no Facebook. Para os amigos que o conheciam, foi uma completa surpresa, mas afirma ter tido uma boa recepção por parte dos ouvintes. Depois que postou a primeira música, entrou num frenesi e compunha uma música por semana.

Felipe. Foto: arquivo pessoal

Natan tinha maior proximidade com o rap, mas para ele não tinha diferença com o funk: “Eu conheci o rap na oitava série. Ouvia Emicida, faz muito tempo, ele nem era famoso. Foi na época que ainda ficava rimando nas batalhas, principalmente na do Sta. Cruz. Ouvia também os clichês da época, mas Emicida trazia uma mensagem diferente”. Foi ouvindo Emicida que se inspirou mais em rimar. Não abandonou o funk, mas se abriu a outras possibilidades.

No ensino médio, conheceu mais de perto o rock, porém não se deixava cativar: “Eu era funkeiro. Os funkeiros acham o rock coisa de idiota, e no rock não é muito diferente. Então eu não podia aceitar gostar disso”. Quando os amigos da Etec mostraram alguns rocks a ele, sentiu-se atraído, porém não queria dar o braço a torcer. Na época, abandonou a prática de escrever, até começar a frequentar shows de rap com alguns amigos.

Natan gostava muito de sair, mas admite que fazia coisas das quais não se orgulha: “Eu era idiota, a gente dava rolê de idiota. Saíamos pra brigar. Arrumávamos confusão em todo lugar. Jogávamos pedras nos carros, quebrávamos as placas. Hoje eu entendo que éramos idiotas”, assume. Foi dessas saídas que se envolveu em uma briga, onde a herança é uma cicatriz de 11 pontos na altura da cabeça. Uma característica em comum entre os dois é que ambos escreviam sobre o cotidiano, no trabalho e, muitas vezes, no banheiro desse. Um dia marcante foi após uma briga com o tio, no escritório de contabilidade, onde trancou-se no banheiro por mais de vinte minutos e saiu com seu primeiro rap. Antes suas produções eram todas de funk.

A parceria

Natan e Felipe conheceram-se nas andanças da vida e por amigos em comum. Rapidamente tornaram-se grandes amigos. Passaram a sair juntos. Natan acredita que aproximar-se de Felipe e começar a namorar na mesma época tenha sido sua “salvação”. Foi depois desses episódios que entendeu a falta de lógica em sair pra arrumar confusão, além dos acidentes que sempre aconteciam. Felipe tinha uma maior experiência com o rap e com produção do mesmo, Natan gostava mesmo era de rimar.

Ambos passaram por situações bem parecidas, o que os aproximou ainda mais. Por um tempo, foram usuários de vários entorpecentes, além de uso excessivo de álcool. Natan bebia muito e fazia uso recorrente de maconha. “Não sei o que pensava, era como se quando usava essas coisas escrevesse melhor, mas hoje sei que não era”, admite Felipe. Acreditam que o uso dessas coisas aceleram processos naturais da mente. Ambos sofrem de ansiedade.

Não admitem o uso para a família, mas os pais de Natan, descobriram: “Foi o pior dia, mas de uma certa forma, foi bom. Meu pai descobriu por uma conversa no antigo MSN. Naquele dia, a gente lavou toda a roupa suja. Eu falei tudo que sentia e ele me explicou os motivos por ter se afastado. Hoje nós somos amigos, muito mais que pai e filho”. Ele atribui a esse acontecimento motivo que o fez “crescer”.

Em 2015, num intervalo de meses, ambos tiveram crises de pânico pouco tempo depois de fazer uso de drogas e bebida alcoólica. Natan passou mal num antigo trabalho. Fez acompanhamento psicológico por um tempo, mas não admitia a doença, assim, não queria fazer o uso dos medicamentos. Hoje diz ter aprendido a lidar com a situação e que está bem. Felipe sentiu os sintomas em casa, para o amigo ele ainda tem dificuldade de admitir o que aconteceu. Acredita que teve um início de ataque cardíaco. Natan, por ter passado por situação parecida, ajudou o amigo a superar a crise. Ele também acredita estar bem.

Haxincha já havia gravado em estúdio, tinha maior experiência. Porém, com os acontecimentos, deu um tempo na música. Precisava se recuperar antes. Acredita que esse tenha sido o motivo para apresentar músicas diferentes agora: “hoje a gente escreve de dentro pra fora. Falando de nós mesmos. Como foi essa fase que passamos e como saímos dela”. Nesse momento produziam um ep com seis faixas, intitulado “tormentas”. “Nesse EP, a gente quer mostrar não só o que passamos, mas que superamos e como o fizemos. Não é só dizer o que aconteceu. É como se quiséssemos dizer que é possível sair das tormentas”, conclui.

Os nomes das faixas formam uma frase “Eu sou", "Tormentas", "Retorquindo Quantos", "Talvez", "Já fui”. O EP todo é de produção caseira. Felipe e Natan sempre entregam-se de cabeça em seus projetos, por isso sentiram a necessidade de cuidar das próprias composições, assim, dedicam-se também à produção. No entanto, acreditam que a fase ainda precisa ser aprimorada: “A gente fez a produção, mas ainda não está boa. Masterização precisa melhorar. O som precisa sair bom em qualquer saída de áudio e varia de um a outro”. Primeiro investiram em equipamentos para produção, mas agora querem investir em qualificação: “a gente ainda está montando. Compramos uma mesa, um microfone e um fone de retorno. Agora nas férias, vou fazer um curso online de produção voltado para um programa que veio junto com o que compramos.”, revela Felipe.

Nunca se juntaram para escrever. Ao serem questionados, revelaram que cada um compõe uma parte da música e se juntam para produzir. A falta de tempo para se encontrarem também atrapalha a composição conjunta.

O futuro

“Agora a gente quer aprimorar nosso som.”, é o que espera Natan. Felipe admite que mesmo encaminhando-se para formar-se como publicitário, a divulgação do trabalho é fraca: “Nós queremos expandir isso, mas sendo perfeccionistas, temos que melhorar o som pra oferecer um produto de qualidade para quem vai ouvir”, justifica.

Ainda não fizeram nenhum show, outra coisa que, segundo eles, precisa ser pensada: “a gente acabou se fechando por não trabalhar com produção de estúdio, mas vamos começar a trabalhar mais isso”. Na Mooca existe um bar onde as pessoas podem fazer apresentações ao vivo: “É assim, você traz sua música, coloca lá e canta. A gente esta vendo de ir divulgar nosso trabalho lá, mas é preciso deixar passar essa semana de provas”, explica.

Estão trabalhando em músicas novas e preparando-se para a produção. Algo que pode atrapalhar o andamento do trabalho é o assalto de Natan e a namorada no dia anterior, onde todas as letras estavam no celular levado e, também, o notebook de Felipe, onde eles fazem a produção, foi invadido por um vírus e estava na assistência técnica.

“A gente não sonha muita coisa. O nosso sonho é viver de música. O dia que isso acontecer já vai estar ótimo. Não queremos ficar ricos”, sonha Felipe. “Eu só quero passar minha mensagem para outras pessoas. Um dia encontrar alguém dizendo que nosso som salvou a vida dele. Assim como eu queria fazer com muitos cantores que são referências para nós”, complementa Natan.

Natan, Felipe e ídolo, Neto, integrante da dupla Síntese. Foto: arquivo pessoal

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